Existe uma expressão forte, corrente na França, um valor compartilhado ostensivamente desde cedo nas escolas: “pacto republicano” (doutrinação na escola!!! rsrsrs). O francês aprende que se trata de uma luta antiga de construção social, da qual ele faz parte hoje. Vendo “de fora” o francês é um republicano, mesmo se ele nem sempre tem plena consciência disso. Sim, porque considerando a que ponto somos produto do meio, não é sempre fácil saber o que somos. É preciso sair de sua “fôrma” para ver no que dá o bolo.
Veja algumas manifestações interessantes:
Se o índice de poluição de Paris indica “estado crítico”, é prefeitura (La Mairie), determinar gratuidade nos transportes públicos, ou redução drástica nas tarifas, para que a população não pegue seus os carros;
Se é anunciado um aumento na taxa de matrícula anual na Universidade (a escolaridade é pública na França, a taxa do último ano do curso superior - Master, por ex. é 243,00 euros) o pau quebra nas ruas.
Existem vários exemplos de como o francês é consciente de direitos que nem suspeitamos por aqui, e os reivindica imoderadamente. Quem não atravessou uma grève em Paris, atrapalhando sua viagem?
Esses são apenas alguns dos poucos exemplos de uma mentalidade “Republicana” francesa. “Sim, o Estado deve me dar, porque temos um pacto, eu pago por isso, lutei por isso, escolhi esse pacto social”. Hoje, esse pacto se encontra ameaçado. Parece que o contrato social está “em revisão” no mundo inteiro, mesmo em países onde ele é fraco, como no Brasil, ou mesmo quase inexistente. Mas não vou entrar nesse mérito, não agora.
E é preciso esclarecer também que a noção de republicanismo difere de um país para outro, como nos EUA, onde republicano é representado por uma direita, mais conservadora em valores, enquanto na França ele remete aos preceitos de Igualdade-Fraternidade-Liberdade.
Vamos fazer uma rápida viagem através da construção republicana francesa para entender melhor seu desenrolar, em paralelo com grandes movimentos artísticos.
Considerando as 5 Repúblicas Francesas, 5 mudanças radicais na constituição, eu diria que somente a partir de 1958 a França chegou enfim ao seu ideal republicano, ou seja, uns 160 anos depois da Revolução Francesa. Foi o tempo de amadurecimento necessário atravessando os reveses da história.
A 1ª República (1792-1804)
A República Francesa foi instaurada pela “Convenção” em 1792, no meio de uma confusão total pós Revolução Francesa e batalha de poder, que acabou com o Golpe de Estado de Napoleão 1º em 1804, se auto proclamando Imperador. O rei Louis XVI e Maria Antoinette, que estavam presos desde a Tomada da Bastilha em 1789, são decapitados no começo dessa república “desgovernada” (“La Terreur" - 1793). Esse período marcado por sonhos e desilusões faz nascer o movimento “Romantismo” francês. O Romantismo é, além de muita evasão, também uma forma de construção cultural dos ideais, no caso da França, pós revolucionários. Veja o quadro de Delacroix, “La Liberté guidant le peuple”, onde vários elementos alegóricos estão representados. Esse quadro foi feito em reação à revolta conhecida como “Les 3 Glorieuses”, Os três dias gloriosos, desencadeando a “Monarchie de Juillet” - Monarquia de Julho, uma Monarquia Moderada, após o massacre. Assim termina a República.
La Liberté guidant le peuple - A liberdade guiando o povo, Eugène Delacroix, 1830, Museu Le Louvre.
A 2ª República (1848-1852)
Estamos no começo do movimento cultural do “Realismo”, que rejeita o anterior, o Romantismo. Não há mais espaço para romantizar, nem sonhar. A realidade se mostra dura novamente com a revolução industrial, demonstrando que a opressão do homem pelo homem não precisa vir de um rei ou outro déspota. A burguesia preocupada com as revoltas sociais se une com os monarquistas para eleger uma Assembléia legislativa conservadora. Louis Napoléon Bonaparte, sobrinho de Napoleão 1,º é então eleito Presidente da República em 1848, mas promoveu (também) um Golpe de Estado, instaurando em seguida, o 2º Império. Ainda assim, este é o começo da grande reforma na França, e a gentrificação de Paris.
Les casseurs de pierre - Quebradores de pedra - Gustave Courbet, 1849, considerado o pai da pintura Realista
A 3ª República (1870-1940)
Essa república nasce de outra desordem, a da derrota da guerra com a Prússia (então Alemanha), conduzida estupidamente pelo então Imperador Napoleão III. Essa República começa com um partidário de uma monarquia parlamentar e evolui em uma República Social Democrática. É neste momento que se consolidam premissas republicanas propriamente ditas: políticas de cidadania, educacional, idéias do iluminismo, liberdade de expressão, e também hegemonia linguística (línguas locais persistiam até então na França!), legalização de sindicatos (apesar do pauperismo da industrialização), a lei do laicismo é enfim votada, ou seja, uma vitória efetiva contra o Antigo Regime. É a partir dessa República que se vive a ideia de progresso, a conhecida “Belle Époque”, com a instalação da Torre Eiffel na exposição universal de 1889. Ela atravessa a 1ª guerra mundial, e entre as Duas Guerras, instala os primeiros grandes direitos trabalhistas: férias pagas, regulamentação do horário de trabalho, alguma proteção social… mas o patriotismo construído na Europa do séc. XIX conduz a separatismos indo ao fascismo. Durante a 2ª guerra mundial, a cidade de Vichy torna-se a sede do governo colaboracionista nazista, chegando-se a falar em República de Vichy.
Toulouse Lautrec representa a vida “bohème” de Paris, o Moulin Rouge e também com suas litografias revolucionárias que são os cartazes na “Belle Époque”.
A 4ª República (1946-1958)
O general De Gaulle, que havia encabeçado a “Libération” na 2ª Guerra Mundial, obtém apoio de grupos políticos para “arrumar a casa”. Assim nasce a 4ª República. Mas o imperativo de uma modernização política e social e especialmente a luta pela Independência Argelina precipitaram o fim da 4a República. O Movimento de Contracultura de maio de 68 em Paris vai confirmar bem esse desejo coletivo de uma nova era.
A 5ª República (1958-presente)
Atinge-se enfim um nível elevado dos preceitos sonhados: Liberté-Egalité-Fraternité.
Poderíamos entender a 5ª República como o começo de uma pós-modernidade.
E temos aqui outro paradoxo da história: a Modernidade se vê também como busca de um regime moderno, ou seja, não absolutista, logo, republicano. Quando finalmente a França se aproxima do seu ideal, parece desfrutar de um período relativamente curto para gozar desse pacto social atingido. A sociedade moderna dá sinais de saturação, aspirando por novos paradigmas, institucionais, políticos, mas também relacionais, pós-modernos.
Banksy, 2002. A "Street Art", seria uma das manifestações de cunho “pós-moderno”
O que eu penso.
As aspirações de “res publica” institucionalizada, adquirida, parece precisar ceder à uma consciência coletiva de coexistência necessária, não tanto imposta mas sim percebida. Na França já se discute sobre uma possível 6ª República. Mas se o pacto social nacional se faz por hegemonias, o respeito às diversidades impõe outros tipos de acordos.
No paroxismo da modernidade, descobriu-se a relatividade. A realidade não é mais única, homogênea, hegemônica. Mundialização não é mais tanto sinônimo de hegemonia como se temia. Realidades devem coexistir em colaboração mútua e não rivalizando entre elas. O “Sistema Mundo” é insustentável, o planeta não suporta mais a ordem mundial moderna. A saída para uma não auto destruição mundial é um pacto social supranacional, e não somente com instituições pós fim da guerra mundial como a ONU, mas um pacto implícito, consciente e justo. O papel dos Estados deveria ser fomentar essa ideia: pela vida (feliz) no planeta.
A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade deveriam ser valores internalizados antes de institucionalizados. E se tudo o que se conquistou hoje já foi utopia antes, não há porque não sonhar.
Vive la République Humaine!
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